quarta-feira, 31 de março de 2010






..."E decidiu: vou viajar.
Porque não morri,
porque é verão,
porque é tarde demais
e eu quero ver, rever,
transver, milver tudo que não vi
e ainda mais do que já vi,
como um danado, quero ver feito Pessoa,
que também morreu sem encontrar.
Maldito e solitário, decidiu ousado:
vou viajar."


[Caio Fernando Abreu]

terça-feira, 30 de março de 2010




esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama

sinto muita pena de
minha mulher

ela vai ver este
corpo
rijo e
branco

vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:

“Henry!”

e Henry não vai
responder.

não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.

no entanto,
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas

e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:

eu
te amo.


[Bukowski]

segunda-feira, 29 de março de 2010




"Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa, era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara. Ninguém me perdoaria se soubesse que eu sei o que elas são, o que elas eram."


[Caio Fernando Abreu]

sexta-feira, 26 de março de 2010






todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.

suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga


[Bukowski]

quinta-feira, 25 de março de 2010




às três e meia da madrugada
a porta se abre
e há passos na entrada
que trazem um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e vai ver quem é.

com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?

e ela entra
com o cabelo nos rolinhos
e num robe de seda
estampado de coelho e passarinho

e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.

você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e canções românticas,
e depois de uns dois copos
ela não se preocupa com cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.

não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolinhos,

e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.

e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.


[Charles Bukowski]

quarta-feira, 24 de março de 2010





"De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã."


[Caio F. Abreu]

segunda-feira, 22 de março de 2010




Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialétos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?


[Leminski]

sábado, 20 de março de 2010





'Eu vejo tantos homens com raparigas serenas e meigas
em vestidos de linho.Raparigas com rostos que não são traiçoeiros ou
predatórios.

- nunca tragam uma puta, digo aos meus
poucos amigos, ainda me apaixono por ela.

- tu não suportarias uma mulher meiga, bukowski.

eu preciso duma mulher meiga. preciso duma
mais do que preciso desta máquina-de-escrever, mais do que
o meu carro, mais do que
mozart; eu preciso tanto duma mulher assim que
consigo senti-la no ar, consigo senti-la
na ponta dos dedos, consigo ver passeios construídos
de propósito para ela por eles caminhar,
consigo ver almofadas para a sua cabeça,
consigo sentir o meu sorriso enquanto a espero,
consigo vê-la a fazer festas a um gato,
consigo vê-la a dormir,
consigo ver os chinelos dela ali no chão.

eu sei que ela existe
mas onde está ela
enquanto as putas continuam a encontrar-me?

[Charles Bukowski]

terça-feira, 16 de março de 2010




E quando escutar um samba-canção.
Assim como: "Eu preciso aprender a ser só".
Reagir e ouvir o coração responder:
"Eu preciso aprender a só ser."


Caio F.

segunda-feira, 15 de março de 2010






há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?


[Charles Bukowski]





"Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência."



[Caio F. Abreu]

terça-feira, 9 de março de 2010





Terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida —
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter
um quarto.

... de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores, médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi...

e você se vira
para o lado esquerdo
pra pegar o sol
nas costas
e não
direto nos olhos.


[Poema nos meus 43 anos - Charles Bukowski ]






Sentia-me contente por não estar apaixonado, por não estar
contente com o mundo. Gosto de estar em desacordo com tudo. As pessoas apaixonadas tornam-se muitas vezes susceptíveis, perigosas. Perdem o sentido da realidade. Perdem o sentido de humor. Tornam-se nervosas,psicóticas, chatas. Tornam-se, mesmo, assassinas.


[Charles Bukowski]





(...) gostava das cores de suas roupas; do jeito delas andarem; da crueldade de certas caras. Vez por outra, via um rosto de beleza quase pura, total e completamente feminina. Elas levavam vantagem sobre a gente: planejavam melhor as coisas, eram mais organizadas. Enquanto os homens viam futebol, tomavam cerveja ou jogavam boliche, elas, as mulheres, pensavam na gente, concentradas, estudiosas, decididas: a nos aceitar, a nos descartar, a nos trocar, a nos matar ou simplesmente a nos abandonar. No fim das contas, pouco importava; seja lá o que decidissem, a gente acabava mesmo na solidão e na loucura.



[Charles Bukowski]



"Um nojo, vezenquando me dá um
asco — nojo é culpa, nojo é moral —você se sente sórdido, baby? — eu tenho
medo, não quero correr riscos — mas agora só existe um jeito e esse jeito é
correr o risco — não é mais possível — vamos parar por aqui — quero
acordar cedo, fazer cooper no parque, parar de beber, parar de fumar, parar de
sentir — estou muito cansado — não faz assim, não diz assim — é muito
pouco — não vai dar certo — anormal, eu tenho medo — medo é culpa,
medo é moral — não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo,
culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não aceito
nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu
quero tudo."



[Caio F. Abreu]

segunda-feira, 8 de março de 2010






Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi


[Leminski]

sexta-feira, 5 de março de 2010




o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro

ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.




[Leminski]

quarta-feira, 3 de março de 2010






A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!




[Leminski]

terça-feira, 2 de março de 2010





Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero, Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.




[Leminski]

segunda-feira, 1 de março de 2010





'..porque o verão está no fim, porque na verdade não nos conhecemos, porque nada do que acontecia aqui, rituais, levezas mentirosas, até que minha mentira nos ameaçasse aconteceria realmente se minha mentira não fosse verdade e nada tivéssemos a defender além da verdade inteira de um próximo momento mais verdadeiro que aquele. Mesmo medonho. Baixei a cabeça quando sem pretender fui forçado a dizer assim, cínico talvez, mas absolutamente passível de perdão, embora não necessitasse dele, porque de alguma forma havia feito exatamente o que me fora destinado fazer, ainda que para isso um eu desconhecido precisasse tomar o comando de mim e disse então, olhando nos olhos de um por um dos outros oito: foi por Amor que menti.'



[Caio F. Abreu]