terça-feira, 29 de dezembro de 2009



Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leões em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.




[Leminski]

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009


"Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos – você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim".



[Caio Fernando de Abreu]


"Frágil — você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal, de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse.Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos, começa a passar."



[Caio Fernando de Abreu]

terça-feira, 22 de dezembro de 2009



Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a magoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra não voa
porque não quer
não porque não tem asa





[Paulo Leminski - Do livro distraidos venceramos]

.. Mas só muito mais tarde, como um estranho flash-back premonitório, no meio duma noite de possessões incompreensíveis, procurando sem achar uma peça de Charlie Parker pela casa repleta de feitiços ineficientes, recomporia passo a passo aquela véspera de São João em que tinha sido permitido tê-lo inteiramente entre um blues amargo e um poema de vanguarda. Ou um doce blues iluminado e um soneto antigo. De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira. Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que depois venha o tempo do sal, não do mel. ...


Caio Fernando de Abreu

Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança.
grande coisa não se perde.
Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.




[Paulo Leminski]

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009



sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa



[Paulo Leminsk]

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009



sirenes, bares em chamas,
carros se chocando,
a noite me chama,
a coisa escrita em sangue
nas paredes das danceterias
e dos hospitais,
os poemas incompletos
e o vermelho sempre verde dos sinais




[Paulo Leminski]

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo feito
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se as coisas
fossem todas
afinal de contas

[do livro Distraídos Venceremos]

[Paulo Leminsk]

terça-feira, 15 de dezembro de 2009


(...) Andei amando loucamente, como há muito tempo não acontecia. De repente a coisa começou a desacontecer. Bebi, chorei, ouvi Maria Bethânia, fumei demais, tive insônia e excesso de sono, falta de apetite e apetite em excesso, vaguei pelas madrugadas, escrevi poemas (juro). Agora está passando: um band-aid no coração, um sorriso nos lábios – e tudo bem. Ou: que se há de fazer.



[Caio Fernado de Abreu]

:(



'A vida dura só um dia, Luzia,E não se leva nada desse mundo'

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009


"Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo quem não duvidava (e eram poucos) também não tinha a menor idéia de como fazer para chegar lá. Mas, entre esses poucos, corria a certeza que, se quisesse mesmo chegar lá, você dava um jeito e acabava chegando. Só uma coisa era fundamental (e dificílima): acreditar."


[Caio Fernando de Abreu]

sábado, 12 de dezembro de 2009





Tu não estas comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a...
Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua...

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra n'água.

Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...

E te amo como se ama um passarinho morto.



Manuel Bandeira

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009


Amanhã fico triste… amanhã!
Hoje não… Hoje fico alegre!
E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo: Amanhã fico triste, hoje não…”



(Poema encontrado na parede de um dos dormitórios de crianças do campo de extermínio nazista de Auschwitz)




Eu estava triste antes de ler isso =D



Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.



Manuel Bandeira

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009



Andorinha, andorinha lá fora esta cantando:
-Passei o dia a-toa, a-toa.
Andorinha minha canção é mais triste:
-Passei a vida a-toa, a-toa.´´





[Manuel Bandeira]



A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto… Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina…

A ver-te, a rir numa gavota,
Meu coração entristeceu
Por que? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão… Sorrias tanto…
E o teu sorriso foi meu pranto…

Já eras moça… Eu, um menino…
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino…
Em pobres versos te chorei
Teu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via…
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza é que mo diz…

Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris…

Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina…
A desventura te afeiçoou
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina…

Manuel Bandeira, Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1985

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009



Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode ergue-la ainda.

Dá o sopro, a aragem, – ou desgraça ou ânsia -

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistemos a Distância -

Do mar ou outra, mas que seja nossa!



[Fernando Pessoa]

terça-feira, 8 de dezembro de 2009



A porta da verdade estava aberta,

mas só deixava passar

meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava

só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade

voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.

Chegaram ao lugar luminoso

onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades

diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era totalmente bela.

E carecia optar. Cada um optou conforme

seu capricho, sua ilusão, sua miopia.




Carlos Drummond de Andrade




Não te deixes destruir…

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

E não entraves seu uso

aos que têm sede.


CORA C.



    Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
    Não achas, soprando por tanta solidão,
    Deserto, penhasco, coval mais vazio
    Que o meu coração!

    Indômita praia, que a raiva do oceano
    Faz louco lugar, caverna sem fim,
    Não são tão deixados do alegre e do humano
    Como a alma que há em mim!

    Mas dura planície, praia atra em fereza,
    Só têm a tristeza que a gente lhes vê
    E nisto que em mim é vácuo e tristeza
    É o visto o que vê.

    Ah, mágoa de ter consciência da vida!
    Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
    Que rasgas os robles - teu pulso divida
    Minh'alma do mundo!

    Ah, se, como levas as folhas e a areia,
    A alma que tenho pudesses levar -
    Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
    De eu ter que pensar!

    Abismo da noite, da chuva, do vento,
    Mar torvo do caos que parece volver -
    Porque é que não entras no meu pensamento
    Para ele morrer?

    Horror de ser sempre com vida a consciência!
    Horror de sentir a alma sempre a pensar!
    Arranca-me, é vento; do chão da existência,
    De ser um lugar!

    E, pela alta noite que fazes mais'scura,
    Pelo caos furioso que crias no mundo,
    Dissolve em areia esta minha amargura,
    Meu tédio profundo.

    E contra as vidraças dos que há que têm lares,
    Telhados daqueles que têm razão,
    Atira, já pária desfeito dos ares,
    O meu coração!

    Meu coração triste, meu coração ermo,
    Tornado a substância dispersa e negada
    Do vento sem forma, da noite sem termo,
    Do abismo e do nada!

    Fernando Pessoa, 16-2-1920.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009



devagar

escreva uma primeira letra

escreva na imediações

construídas pelos furacões;

devagar meça a primeira pássara bisonha

que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais;

devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés;

devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais;

devagar peça mais e mais e mais

Ana Cristina César



Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assaviva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuroe a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina da Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta.

Ana Cristina César

sábado, 5 de dezembro de 2009



Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra.

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!


Ana Cristina César
Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema originalmente publicado em 1985.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009



'Poesia é voar fora da asa.'




Manoel de Barros

Bom final de semana :)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009




Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.


[Manoel de Barros]

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009






A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.


[Manoel de Barros]



'A tarde está verde no olho das garças.'



Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.



[João Cabral de Melo Neto]

terça-feira, 1 de dezembro de 2009


Para Leonardo B.
    Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
    Mas, quando dispertei da confusão,
    Vi que esta vida aqui e este universo
    Não são mais claros do que os sonhos são

    Obscura luz paira onde estou converso
    A esta realidade da ilusão
    Se fecho os olhos, sou de novo imerso
    Naquelas sombras que há na escuridão.

    Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
    É a mesma mistura de entre-seres
    Ou na noite, ou ao dia transferida.

    Nada é real, nada em seus vãos moveres
    Pertence a uma forma definida,
    Rastro visto de coisa só ouvida.

    Fernando Pessoa, 28-9-1933.