sexta-feira, 20 de agosto de 2010



Subia e baixava — eu, a Roda da Fortuna — nos braços às vezes de um demônio sombrio vestido de negro, às vezes de um arcanjo dourado, em susto, em prazer, em nojo, em delírio.
(...)
— Tenho sete formas. Navegue.
Abraçou-me. Tinha cheiro de mar. Do mar que não há nesta cidade.
Pedi que ficasse, como não ficou o outro. Mas não o suportaria, acrescentei a seguir. Sorriu. Como se nada do que eu pudesse dizer fosse capaz de modificar sua partida. Ainda chove, tentei dizer. Não importa, será melhor assim, repetia sua mão estendida. Passou-a devagar na minha face. Eu era uma coisa pequena, rastejante e sem Deus, caminhando no escuro lamacento à procura apenas de qualquer gesto como o toque de uma mão humana, devagar na minha face. Ele tocou. Calçou os sapatos, apanhou o chapéu. Eu quis dizer que poderia ocupar o segundo quarto — a segunda cama, a segunda vida — talvez para sempre. Eu estava tão vivo que qualquer outra coisa também viva e próxima merecia minha mão estendida, oferecendo. Estendi a mão. Ele não podia acei tá-la
Eu não devia estendê-la.
— O navio demora pouco no porto — disse antes de partir. — Um marinheiro desce, olha a terra, às vezes deposita algo, e logo torna a partir.
Seus olhos tinham a r do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, durante todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar. Conquistara esse verde móvel, inquieto, esse vagar. Tocou de leve minha mão estendida. E se foi. Ainda chovia. Fechei a porta às suas costas. Por entre os roxos e amarelos da pequena vidraça vertical, podia perceber a silhueta de alguém se afastando. Dentro de uma noite de sábado, não de agosto. Era novembro. Bebi outro gole de conhaque. Fui escorregando para o fundo, no meio das almofadas. Amanhecia. Na casa em frente, os ruídos tinham silenciado. Seria um longo domingo. Não estava triste, mesmo assim recomecei a chorar enquanto ouvia outra vez o aviso guardado para sempre na memória das paredes:
— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais.

[Caio Fernando Abreu]

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