quinta-feira, 29 de julho de 2010




Encontrei com o João Guimarães – o Guima, não o Rosa – em um bar ali nas proximidades dos arcos da Lapa, numa dessas tardes cariocas de calor sufocante. Enquanto disputávamos um lugar no balcão lotado, o Guima desferiu uma gentil cotovelada em minhas costelas:

– Corre que eu achei uma mesa vagando!

E fomos atravessando o salão, entupido de gente, com ele me rebocando pela camisa enquanto entoava o mantra “com licença, perdão, desculpa, ôpa, obrigado, desculpa...” até uma mesinha perto da janela.

Sentados e acomodados, partimos para os comes e bebes. Ele foi de bolinho de bacalhau, eu pedi de carne. Ele riu e eu mudei de idéia.

– Comer carne aqui é de uma valentia...– completou.

O garçom, que acompanhava a conversa sem muito interesse, concordou com a cabeça.

– Mas diga lá, como vão as coisas em São Paulo.

– Muito trabalho...

– O quê? – Interrompeu – Trabalho em São Paulo? Não acredito!

– Esse estereótipo...

– Tá bom, mas diga lá o que te traz ao Rio.

– Preciso escrever sobre o centenário do nascimento do Cartola. Você chegou a conhecê–lo, não?

– Rapaz, não vou dizer que éramos amigos, mas...

– Ai, não começa com cascata que o negócio é serio.

– Tá bom.

– Ele era da Mangueira, não era?

– As pessoas confundem. Principalmente os paulistas, né? – Provocou. – Ele é um dos fundadores da Escola, mas não é de lá. Ele nasceu no Catete, em 1908, depois foi pras Laranjeiras e só foi morar no Morro da Mangueira aos onze anos de idade.

– Agenor de Oliveira, não é ?

– Na verdade Angenor. Erro do cartório que ele só descobriu quando foi casar com a Dona Zica, em 1964.

– E como é que você guarda essas datas, hein?

– Aprendi apontando o jogo do bicho. – respondeu com um sorriso insano. – Ou foi me preparando pro concurso de Miss Niterói. Sabe Deus...

– E por que Cartola?

– Jovem ainda, trabalhando como ajudante de pedreiro, usava um chapéu coco para proteger o cabelo do cimento. Os amigos chamavam aquilo de cartola e o apelido pegou.

– E quando é que ele vai se envolver com a música?

– Ih, desde menino. Aqui no Rio, o samba...

– Pô, será que eu vou ter que lembrar que você é mineiro?

– Mas carioca de adoção! Chefia, mais uma por favor!

– E a música?

– Olha só: ele já era ligado aos ranchos em Laranjeiras. Um deles era o Arrepiados, que ele gostava tanto que levou suas cores, o verde e rosa, pra Mangueira. Mas também tem o verde e grená do fluminense, então... No Morro, ele participou da criação do Bloco dos Arengueiros, em 1925. Esse foi o embrião do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.

– Primeira Escola de Samba ou primeira estação da Central do Brasil?

– Aí vai uma imprecisão histórica. Ou justiça poética. Porque a Mangueira não é nenhum nem outro. A primeira escola de samba foi a Deixa Falar, embora a Mangueira tenha sido a primeira a oficializar uma data de fundação, em 28 de abril de 1928. Já quanto à estação de trem, a D. Pedro II é de 1866.

– E o Cartola já era músico profissional nessa época?

– Olha, a carreira dele é, para alguns historiadores, uma metáfora da história do próprio samba, com épocas de sucesso e abandono. Ele teve que parar de estudar cedo. Mal tinha completado o primário quando a mãe morreu e ele teve que trabalhar. Viveu de uma série de biscates, como gráfico, auxiliar de pedreiro... Profissionalização mesmo só pra meados dos anos 60.

– Mas ele já não era famoso antes?

– Ele foi famoso, primeiramente, no Morro, entre os sambistas. Aliás, o primeiro samba-enredo da Mangueira, Chega de demanda, de 1928, é dele. Mas a primeira gravação é de 1929, do Francisco Alves. O Mário Reis passou para ele um samba que tinha comprado do Cartola, Que infeliz sorte, por 300 mil-réis. Aí ele começa a vender outras composições...

– Mas como se sabe que a música era dele?

– Ao contrário de muitos compositores da época, o Cartola vendia os direitos da gravação e não os de autoria. Agora, sucesso mesmo, popular, é em 1933, quando o Francisco Alves lança Divina dama.

– Ele foi contemporâneo de Noel Rosa, não foi?

– Foram amigos, inclusive. Noel passou algum tempo em sua casa e fez a segunda parte do samba Diz qual foi o mal que te fiz, mas não quis assinar, deixando os direitos para o parceiro.

– Mas quando é que ele...

– Ah, você quer saber do nariz?

– Como é que é?

– Nada, nada. Garçom, outra gelada, faz favor!

– Bom mas e o sucesso...

– Ih, mas que mania, rapaz. Vamos com calma. – Disse com a voz já meio amolecida – Não quer saber das mulheres?

– Bom, eu não escrevo para revista de fofoca.

– Ah, paulisssssta! Mas um poeta como esse depende de suas musas, não? Quando a mãe dele morreu, ele tinha uns 15. Abandonou os estudos para trabalhar e começou a conhecer a boemia. Tanto que, lá pelos 17, seu pai o deixa por conta própria. Aí, soltinho, caiu na esbórnia. Bebiba, namoradas... Tanto descuido e acabou doente. A mulher que morava no barraco ao lado do seu acabou por cuidar dele. Deolinda era sete anos mais velha, casada e com uma filha de dois. Mas uma coisa levou à outra e eles acabaram juntos.

– Sem tiro?

– Aparentemente... Ficaram juntos até a morte dela, em 1947. Mas temos que falar dos anos perdidos também..

– Como assim?

– Em 1946, ele teve meningite e sumiu de cena. A Deolinda cuidou dele e morreu no ano seguinte. Ele então se envolveu com uma mulher chamada Donária. E como o Cartola mesmo disse, largou tudo por ela, a Mangueira, a música, e estava morando no Caju. Aí, em 1952, ele e a Dona Zica se reencontraram. Ele estava na pior, bebendo muito, o nariz...

– Que mania com nariz, rapaz!

– Mas nesse caso faz sentido. O nariz dele parecia uma couve flor por causa de uma doença chamada rosácea.

– Nas fotos ele aparece normal, mas com uma mancha escura.

– É que ele ganhou uma cirurgia do Pitanguy ali pelo começo dos anos 60.

– Mas a Zica começou a namorar com ele em 52...

– Prova de que era amor mesmo. Garçom, mais uma aqui!

– E quando terminam esses anos perdidos?

– Não há uma data precisa, mesmo porque quando ele se junta com a Zica começa a se recuperar, bebendo menos... Voltando pra Mangueira, voltando pra música. Aí, em 1956, ele foi reconhecido pelo Sérgio Porto enquanto lava carros. O Sérgio o ajudou a arrumar um emprego e ele foi voltando, aos poucos, a ficar em evidência.

– Esse Sérgio é o Stanislaw Ponte Preta?

– Isso. Mas tinham outros que não deixavam seu nome ficar esquecido, como o historiador Lúcio Rangel, que o chamava de Divino...

– Como o Ademir da Guia? – Interrompi.

– ...E muitos outros. – Ignorou – Aí, em 1963, ele inaugura o Zicartola, que para muitos é um marco na história do samba, porque contava com apresentações dos melhores sambistas do morro que eram assistidos por uma nova geração. Aliás, Cartola dizia que tinha pago o primeiro cachê do Paulinho da Viola...

– Foi o auge?

– Só o começo. A coisa esquenta mesmo nos anos 70. Muito tardiamente, em 1974, ele lança um disco individual, com uma série de clássicos. O trabalho recebeu prêmios, rendeu vários shows e ele conheceu uma popularidade inédita na carreira. Gravou ainda outros três discos em estúdio.

– Tem aquelas bem manjadas, como a do moinho.

– Rapaz, outro dia eu ouvi na internet, na página da Beth Carvalho, uma gravação do Cartola mostrando As rosas não falam pra ela. Depois ele toca O mundo é um moinho, mas diz que não é pra ela, que ela ia “queimar a música” e tal. Mas ela gravou a primeira em 1976 e foi um super sucesso. Aí a outra ela gravou no ano seguinte e, me parece, funcionou muito bem. Aliás, garçom, mais uma faz favor. E traz um conhaque também.

– Você não tem que voltar pro trabalho?

– O Cartola gostava de beber cerveja com conhaque. Eu acho uma boa escolha. E olha só: ele nasceu no dia que morreu o Machado de Assis... Os dois mulatos, imortais... Mas falando nisso, tem o Sargentelli e as mulatas... É isso, vamos ver as mulatas do Sargentelli!

– Acho melhor irmos...

– Quando o primeiro disco saiu, ele já tinha 66 anos. Morreu em 1980, de câncer. O primeiro disco do Balão Mágico é de 1982...

– Tá ficando tarde. Vamos indo. Garçom?

– Mais uma!

– A conta!

O Guima me olhou contrariado, meio com raiva, meio com sono. E logo já não lembrava de nada. Pagamos a conta e foi minha vez de rebocá-lo até o ponto de ônibus que, por sorte, passou logo.

– O Nélson Sargento disse que o Cartola não existiu, que foi um sonho que tivemos. – Disse quando finalmente sentamos e começamos a chacoalhar rumo a Vista Alegre.

– Você não comeu o bolinho de carne, não é?

– Não. – Respondi.

– Sorte... – Emendou fechando os olhos.

[por Aldo Gama, da Redação da Agência Brasil de Fato]

4 comentários:

  1. Que história longa, rs!
    Você é do Rio?
    Conheço os Arcos, andei muito aquele pedaço! - Saudades... Um dia volto lá!
    E Cartola não deixou de ser um grande marco da música brasileira.

    Um beijo no seu coração, mesmo com buraco, rs!
    Obrigada pela visita!

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  2. Que história interessante hem! Adorei!

    Lindo blog!

    Beijos

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  3. Maravilhoso artigo. Muito obrigado. Compus um samba pra Mangueira, lendo esta excelente narrativa, achei que gostariam de ouvir, já que cita Cartola, mas também conta a história de um “Cartola” que nunca foi descoberto: Zé Carlos do Morro do Falett do Fogueteiro. “Uma Rosa pra Mangueira”. Espero que gostem

    https://youtu.be/auXAqd2AorE

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